Nunca me esqueço de visitando o Dão com amigos da ViniPortugal dizer que – “o Dão é a Borgonha em Portugal!”
Não é à toa que um dos mais renomados escritores portugueses, José Saramago, declarou ser apaixonado pela região do Dão, com a célebre frase “Tudo nestas paragens são grandezas”. Na minha opinião e de muitos amantes de vinhos, os rótulos criados no Dão são provas líquidas de que ele estava certo.
Com suas vinhas que se distribuem entre pinheiros e montanhas, em altitudes de 400 a 700m que fazem as uvas amadurecem bem lentamente, Dão se tornou famoso pela sua produção de vinhos tintos e brancos com muitos aromas e ótima acidez. A região fica no centro-norte de Portugal, em Beira Alta, com uma produção vinícola histórica de mais de um milênio. As serras do Caramulo, Montemuro, Buçaco e Estrela protegem as vinhas dos ventos e criam um clima ideal.
Conta-se que os monges de Cister, que habitavam a região na Idade Média, intensificaram a produção vinícola que já existia no Dão, com propósitos sagrados e cerimoniais, mas creio que eles perceberam a semelhança dos vinhos criados na região com os vinhos da Borgonha, onde a ordem cisterciense teve sua origem quando da fundação da Abadia de Cister, na comuna de Saint-Nicolas-lès-Cîteaux, em 1098, por Roberto de Champanhe, abade de Molesme.
Apesar da fama de seus vinhos, apenas no século XIX a região foi delimitada, tendo sido a segunda área portuguesa que ganhou a demarcação de produtora de vinho (a primeira foi o Douro em 1756). Com mais de 70 milhões de vinhas, distribuídas em 20.000 hectares, o Dão é considerado como o berço da uva Touriga Nacional, emblema vinícola português.
Os vinhos brancos do Dão, criados com as uvas Encruzado, Bical, Cercial, Malvasia Fina e Verdelho costumam ser muito aromáticos, equilibrados e frutados e estão entre os melhores de Portugal. Já os típicos tintos apresentam cores fortes de rubi, um bom corpo, paladar redondo e sabores delicados e cheios de veludo, com destaque além da Touriga Nacional para a Alfrocheiro, Jaen (Mencia na Espanha) e Tinta Roriz (Tempranillo na Espanha).
A história começou quando alguns amigos estavam estudando comprar uma vinícola na Toscana em Brunello di Montalcino. Jaime Corrêa é primo de Guilherme Corrêa (que em 2000 se tornou o primeiro sommelier brasileiro a realizar sua formação no exterior, na Associazione Italiana Sommeliers, em sua seção territorial da Toscana. Guilherme consagrou-se campeão brasileiro de sommeliers nas duas oportunidades em que disputou o certame, em 2006 e 2009), atualmente morando em Portugal, e pediu que ele fosse até Montalcino conhecer a vinícola toscana. Guilherme elaborou um extenso relatório e neste meio tempo surgiu a oportunidade de buscar uma opção portuguesa, já que seria mais fácil ele dar assistência estando mais perto de casa.
Foi então que há quatro anos, 10 amigos brasileiros (9 de Belo Horizonte e 1 paulista), apreciadores e colecionadores de vinho, se juntaram na ambição de encontrar uma vinícola para fazerem vinho. Descobriram a Quinta Mendes Pereira (que estava à venda) situada junto à vila de Oliveira do Conde, no concelho de Carregal do Sal, rodeada de floresta, com um patrimônio fabuloso de vinhas velhas com mais de 60 anos, inseridas num ambiente com forte apelo cultural e histórico, onde ruínas milenares dos celtas e romanos assinalam os nomes das parcelas.
A sub-região Terras de Senhorim, onde a quinta está enquadrada, fica praticamente no meio da região do Dão, entre dois rios (Dão e Mondego), e goza de um mesoclima mais fresco do que nas zonas mais quentes e menos frio e úmido do que na Serra da Estrela. Os solos são de origem granítica, de textura arenosa e franco-arenosa, pobres em matéria orgânica e fraca capacidade de retenção de água, duas características que não induzem grande vigor na planta e naturalmente regulam a produção. Desta forma, as uvas amadurecem lentamente e com imenso equilíbrio entre açúcares e ácidos, e uma carga altíssima de precursores aromáticos.
É inevitável pensar que estamos caminhando pela Borgonha, em Volnay ou Vosne-Romanée, ao andar pelas antigas ruas de pedra em direção à adega velha, encravada num largo, em frente à brasonada Casa dos Buxeiros, do séc. XVII.
Os sócios desta aventura avançaram com aquisição da quinta em maio de 2021, o ano que deu origem aos primeiros vinhos da Domínio do Açor. O nome do projeto é inspirado no conceito francês de “domaine” - propriedade dedicada à produção de vinho - mais associado à Borgonha, ao qual se junta o nome da Serra do Açor, moderador climático das vinhas daquela zona.
Mas o trabalho estava apenas começando. Primeiro passo de um projeto focado em qualidade foi conhecer o solo da propriedade e Pedro Parra foi convocado para esta consultoria.
Ele, que trabalhou no Domínio do Açor fazendo um profundo estudo e mapeamento dos solos da propriedade, também presta serviços para renomados produtores como Domaine du Comte Liger-Belair, Domaine Roulot e Comando G, é um dos maiores especialistas do mundo no estudo de solos e terroir. Seu estudo tinha como objetivo o de saber como diferem as parcelas de solo entre si? Quais parcelas têm o maior potencial? Como deveriam tratar as uvas de cada parcela na adega?
Após estudar os solos com granulometria e condutividade eletromagnética, e ainda 34 calicatas (escavações no solo utilizadas como método de inspeção do terreno, localizadas entre os vinhedos para que os resultados sejam confiáveis), Pedro Parra identificou que dos 24 hectares de terras, já com 11,4 hectares plantados com vinhedos, estão classificados 40% como Village, 55% como Premier Cru e 5% como Grand Cru numa correspondência a descrição de solos da Borgonha.
O terroir local é muito bem composto entre solo e pedra, mais precisamente entre o limo típico dos solos graníticos, com as rochas degradadas pelos processos químicos e físicos do intemperismo, além do quartzo e da rocha-mãe granito. Predomina em todo o vinhedo uma alterita de nível 5, fantástica para a produção de grandes vinhos.
Para completar a equipe de trabalho, Guilherme Correa, sendo responsável pela gestão e orientação de todas as questões da esfera de produção e comercialização dos vinhos da propriedade, e os sócios do vinícola buscaram um enólogo que fugisse do tradicional, e encontraram em Luís Lopes, que estudou na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) e aprofundou seus conhecimentos em biodinâmica e elaboração integrativa de vinhos na Borgonha a função de enólogo-consultor enquanto o talentoso João Costa é o enólogo-residente.
Com tanta gente jovem e de fé no desenvolvimento de um projeto de vinhos de qualidade, o tratamento das terras e vinhas recebe práticas biodinâmicas, com manejo biológico e trabalho de arejamento e nutrição do solo. Algumas das vinhas têm mais de 60 anos e a poda é do estilo Guyot-Poussard, que respeita o fluxo de seiva na planta e ajuda na prevenção de doenças, além de criar um sistema de ramos que permite uma melhor ventilação e uma exposição ao sol mais eficiente. No total, a propriedade possui 25 vinhas que se dividem entre as castas Touriga Nacional, Alfrocheiro, Tinta Pinheira, Encruzado, Tinta Roriz, Jaen, Cerceal e Bical.
Já sabendo da qualidade dos vinhos que vem sendo premiados pela crítica especializada, uma vez que alguns dos sócios são meus conhecidos (9 deles são mineiros e 1 é paulista), tive a oportunidade de provar os rótulos da Domínio de Açor recentemente num almoço harmonizado realizado no Restaurante Gero do Hotel Fasano em Belo Horizonte. Boa parte da empresa estava presente no Encontro capitaneado por Guilherme Corrêa e Luís Lopes. Vamos então aos vinhos:
♦ DOMÍNIO DE AÇOR VILA ROMANA BRANCO 2022- corte das uvas Encruzado, Cerceal Branco e Malvasia Fina. Claro na cor, o vinho mostrou boa complexidade no nariz, com notas de limão, algo de abacaxi, floral de alecrim, e um toque de carvalho bem integrado ao conjunto. No paladar é bem fresco e mineral, com boa estrutura. O fim de boca é bem complexo e persistente. Acompanhou muito bem carpaccio de salmão marinado e um tartar de atum. Creio que pode harmonizar muito bem com arroz de polvo ou de mariscos, casquinha de siri, bobó de camarão, queijo da Serra da Estrela amanteigado. Sirva entre 10 e 12°C.Tem 92 RP.
♦ DOMÍNIO DE AÇOR ENCRUZADO 2022 - 100% Encruzado. Aqui temos um vinho bem claro, límpido. A casta se faz sentir na complexidade, já que aparecem frutas amarelas (abacaxi e pêssego) e de cítricos, seguidas de notas herbáceas, florais intensas, frutas secas como a amêndoa, tudo bem integrado com um carvalho bem dosado que lhe dá um toque nobre. Na boca mostra acidez correta, é untuoso, cremoso, potente, com as frutas bem nítidas e uma mineralidade agradável. Tem persistência longa e retrogosto frutado. Acompanhou muito bem um bacalhau assado com batatas, cebolas, tomates, alcaparras, azeitonas e pinolis. Pensando em cozinha mineira, creio que vai casar-se muito bem com costelinha com canjiquinha de milho, frango caipira com quiabo. Sirva entre 10 e 12°C. Tem 94 RP.
♦ DOMÍNIO DE AÇOR VINHA CELTA BICAL 2022 - 100% Bical. Também límpido e bem claro, tem um nariz marcado pela mineralidade, aparecendo ervas aromáticas, pêssego, levedura, leve floral, toque cítrico e terroso. Na boca alta acidez, corpo e persistência média, certa untuosidade e retrogosto cítrico. Vinho agradável, fácil de gostar, com fim de boca longo e prazeroso. Acompanhou muito bem o bacalhau assado com batatas, cebolas, tomates, alcaparras, azeitonas e pinolis. Pensando em cozinha mineira, creio que vai harmonizar muito bem com uma moqueca de surubim. Sirva entre 10 e 12°C.Tem 95 RP.
♦ DOMÍNIO DE AÇOR VINHA CELTA JAEN 2021- Um vinho escuro, púrpura, profundo. Aromas de frutas escuras e vermelhas com toques de especiarias. Guilherme comentou que lembra um “cru” de Beaujolais Morgon. A boca é fresca, repete o perfil de aromas, com um final persistente e saboroso. Foi bebido sem acompanhamento, mas creio que harmoniza bem com leitão à pururuca mineiro, com feijão tropeiro, frango caipira com ora-pró-nobis. Servir entre 14 e 16°C.
♦ DOMÍNIO DE AÇOR TINTA PINHEIRA 2021- Cor rubi de média intensidade, o vinho mostra aromas de frutas vermelhas maduras, especiarias como a canela, além de notas vegetais e minerais. O paladar mostra muito frescor e elegância, taninos macios e perfeita acidez. Longo e saboroso. Não conhecia nada desta casta, Tinta Pinheira também conhecida como Rufete, que se queima com sol e apodrece com chuva, razão pela qual perdeu a popularidade na região do Dão. É uma casta vegetal, que precisa de muita atenção na vinificação. Há sugestão de acompanhar arroz de pato ou frango ao molho pardo mineiro. Servir a 16°C.
♦ DOMÍNIO DE AÇOR VILA ROMANA TINTO 2021- corte das uvas Touriga Nacional e Tinta Roriz. Cor rubi de boa intensidade, o nariz mostra notas de frutas silvestres e ervas. O paladar revela os taninos ainda presentes, num vinho de corpo médio, com madeira sutil e mineralidade. Sugestão de harmonizar com carnes de caça, ou carnes vermelhas ensopadas ou assadas. Tem 92 RP.
♦ DOMÍNIO DE AÇOR RESERVA TINTO 2021 - corte das uvas Alfrocheiro e Touriga Nacional. Cor rubi intensa. Paladar elegante e rico, com notas de frutas escuras e especiarias que também aparecem no nariz. Final de boca muito agradável que lembra um vinho de Syrah. A sugestão de harmonização é com carnes vermelhas assadas ou grelhadas. Tem 91 RP e 17,5 JR (Jancis Robinson).
Ao final da prova cabe dizer que realmente são vinhos com alto padrão de qualidade, com maior destaque para os brancos neste momento, na minha opinião. O Bical e o Encruzado foram meus destaques entre os brancos. Dentre os tintos fiquei com o Vila Romana e o Reserva. Tenho a certeza de que ainda vamos ouvir muito sobre o Domínio de Açor, que mesmo estando na Borgonha Portuguesa está tão próximo de nós por conta dos seus proprietários mineiros e paulista. Creio que podemos dizer que são vinhos portugueses com alma mineira!!!
Saúde!!! Aproveite para comentar se gostou ou não!!! (Este artigo está baseado em material disponível na internet, e minhas considerações em relação ao tema).
Comments