A Maratona do Medoc, marcada para 12 de setembro, não será realizada neste ano, por motivos da pandemia. A corrida é muito agradável: os bons perdedores podem se consolar com as vinte paradas nos Chateaux da região para degustar algumas taças revigorantes. Competidores fantasiados realizam uma corrida entre as vinícolas, mas ao invés de receberem garrafas de água, param em cada uma delas para se refrescarem a base do vinho local. Poucos são os que conseguem ultrapassar a linha de chegada. Tudo isso, claro, sempre acaba em festa. E todos podem desfrutar da paisagem vitivinícola do Médoc. Admirar, seria uma palavra um pouco forte! Porque a vista da vinha é bastante decepcionante se você comparar com outras paisagens do Mundo do Vinho, como na Borgonha, no Rhône, na Toscana, no Douro, para citar algumas.
Para aqueles que buscam cenários deslumbrantes, há pouco para ver. Aqui, não há encosta extravagante, nenhuma encosta que encha os olhos, nenhuma floresta ou clareira que pontue a topografia. Apenas extensões grandes e planas de videiras. Hectares após hectares, as fileiras se sucedem e se estendem, tranquilas, bem cuidadas. As vilas? Eles têm pouco prestígio. Para sonhar e se admirar um pouco, são os chateaux que você tem que olhar. Lindas residências que mostram a riqueza dos grands crus e testemunham o sucesso da vinha.
Se a vista sobre a prestigiosa vinha de Bordeaux é decepcionante, por conta das grandes extensões sem relevo, a verdadeira riqueza desta região está escondida no solo que confere caráter aos vinhos.
Em Bordeaux estão localizadas algumas das denominações mais prestigiadas do mundo. Margaux, Saint-Julien, Pauillac, Saint-Estèphe. Este “quarteto fantástico” está às margens do Gironde, de frente para a água. Mas por que está lá e não em outro lugar? Parece impossível de se entender, quando outras vinhas exibem a sua força pelo relevo ou pela exposição ao sol, o vinhedo do Médoc e as suas colheitas e safras devem ser vistas de forma diferente. A planura verde que se apresenta a perder de vista presume um vinho único, que as vinícolas produzem em segredo. Aqui, isto é um banal engano.
Bordeaux nos faz repensar a ideia de que grandes vinhos só crescem nas encostas ou na altitude. Para o bordalês é o contrário, a maioria se pergunta como se poderia fazer bons vinhos em tais relevos. Para os enólogos do Médoc, que trabalham nos châteaux Lafite-Rothschild, Latour, Margaux, Mouton-Rothschild e Léoville Las Cases, entre outros, um dos segredos é uma questão de abastecimento de água. Este é o grande elemento. Se você tem um regime de água que não é muito abundante nem muito estressante para a maturação da videira, você tem um padrão que é bom. O ponto comum a todos os grandes vinhos está aí.
Nisso, o Médoc, na margem esquerda do Gironde, responde com perfeição. Possui solos de cascalho hiper-drenantes, que permitem que a água flua para o rio. Estes solos secos e pobres oferecem condições difíceis e as vinhas compensam por um uso muito importante da terra. Este último é muito arejado, o que permite que as raízes se desenvolvam em grande volume de solo para compensar a falta.
Para entender e capturar isso na paisagem, vale a pena você começar o raciocínio a partir do rio. O Gironde, que, no sopé da denominação Margaux, surge da união dos rios Garonne e Dordogne, fomando o maior estuário da Europa, é animado por correntes oscilantes, entre a água doce, que desce em direção ao oceano, e a salgada, que sobe com a maré que avança as vezes até por 80 km rio adentro. Com os movimentos, a costa fica muito molhada, regularmente inundada. Muitas vezes isto é esquecido quando falamos sobre a vinha adjacente, que é, no entanto, o berço dos vinhos do Médoc. Os “palus” são o termo exato para designar a faixa de planície pantanosa que faz fronteira com o Gironde.
Essas áreas muito úmidas tiveram que ser drenadas. Uma obra titânica realizada por engenheiros holandeses no século XVII. Mas na Idade Média, o “palus” perto de Bordeaux era um paraíso para o plantio de vinhas. O rio depositou lodo e aluvião, criando um solo extremamente rico, capaz de gerar rendimentos significativos. Na orla de Bordeaux, os “palus” eram uma das terras preferidas para o plantio de vinhas, criando um espaço que permitiu uma concentração fundiária, que tinha no próprio rio o caminho de escoamento da produção local.
As vinhas prosperaram, estendendo-se para o norte, onde nasceram novos vinhedos ao longo das bordas d´água, e depois começam a ser construídos os chateaux que testemunham a forte ligação entre Bordeaux e sua vinha.
Quando não estão inundados, os “palus” são férteis e rodeados por numerosos portos menores, que permitem que o vinho seja enviado rapidamente a cidade de Bordeaux, para ser recolhido pelos mercadores do Quai des Chartrons. Quando são produtivas, as vinhas do “palus” não são as mais qualitativas. Algumas centenas de metros para o interior, às vezes um ou dois quilômetros, o vinho é muito melhor. A revolução do Médoc aconteceu no início do século XVIII. Houve uma reorientação dos vinhedos em solos de cascalho, e o “palus” tornou-se uma área de prado. Alguns vinhedos foram replantados ligeiramente mais acima, porque os viticultores perceberam que os vinhos ali produzidos, ficavam melhor com o envelhecimento.
É o caso do Château Dauzac, em Margaux, que conserva 40 ha de “palus”. Hoje o Dauzac cultiva ervas de fertilização e controle de pragas para as vinhas ou feno para um criador vizinho, em troca de esterco para fertilizar a terra. As vinhas que produzem do vinho do Chateau Dauzac encontram-se agora num pequeno planalto que culmina a uma altitude de 21 metros acima do nível da água do Gironde. Parece pouco, mas faz uma diferença incrível.
O Gironde é um regulador climático que traz frescor no verão e calor no inverno. Quando você olha os terroirs classificados em 1855, todos “olhavam” para o Gironde, que oferece um clima ameno. Todos aqueles viticultores que plantaram em outros lugares congelaram em 2017.
No Château Palmer, os “palus” servem de prados para quinze vacas. Mas fazem parte de um todo maior que reconecta os grandes terroirs ao rio. Eles coletam água dos terraços de cascalho e funcionam como um rim.
Os grandes terroirs do Gironde, mal emergem da paisagem, são colinas tímidas feitas de rochas de cascalho muito profundas. O Médoc parece plano e simples, mas é muito complexo. Possui cristas que variam em altitude de 10 a 40 metro, com quedas muito pequenas, mas é importante entender sua formação, no Terciário e no Quaternário. O nível do mar estava então 100 m mais baixo do que hoje. E aquelas pequenas áreas eram, na verdade, grandes vales.
Portanto, não é um terreno plano para olhar; você tem que imaginar a geologia abaixo, resultado de uma história extremamente longa. As estruturas subterrâneas de cascalho onde você só pode ver o topo não é o que você vê na superfície. É algo excepcional, que não tem equivalente no mundo, segundo muitos geólogos de Bordeaux.
Para os especialistas em vinhos de Bordeaux, se os grandes terroirs olham para o Gironde, é sobretudo porque estão situados sobre um terraço de cascalho muito particular. Existem seis terraços paralelos ao Gironde. No entanto, uma série de Grand Crus classificados em 1855 estão localizados no quarto terraço (este profundo conhecimento sobre a geologia da região não estava disponível em 1855, quando a classificação foi estabelecida). Este terraço é o um padrão de qualidade, as vinhas nunca morrem de sede, e nunca há inundação. Os geólogos e enólogos os chamam de terroirs “chaise longue” porque simplesmente deixam as vinhas crescerem como se estivessem plantadas e “deitadas” num sofá. Sem saber nada do que se passava debaixo deste terreno plano, o Médoc soube distinguir a qualidade. Ele se impôs com mais eficácia do que se tivesse desenvolvido sobre uma montanha.
A região costuma ser dividida em Bas-Médoc (no rótulo, apenas Médoc) e Haut-Médoc, a área mais nobre, com diversas AOC comunais.
No Bas-Médoc a camada de cascalho não é tão grossa e o solo argiloso, mais pesado, não consegue drenar com tanta eficiência a água, numa área que pela proximidade do mar já é mais úmida que o restante de Bordeaux. Muito plana e cortada por muitos canais resultantes da drenagem dos pântanos, a região concentra sua produção de vinhos nas áreas com mais cascalho e com um pouco mais de altitude. A Merlot aparece aqui com mais freqüência que a Cabernet, por conta do clima e se adaptar melhor ao solo argiloso e amadurecer mais rapidamente. Não há nenhum cru classé, mas muitos crus bourgeois da região possuem boa relação custo-benefício em se tratando de Bordeaux.
Já o Haut-Médoc é a região das grandes estrelas de Bordeaux. Além dos 60 crus classés e 4 dos 5 premiers crus classés, nela há mais de 150 crus bourgeois de vários níveis, alguns dos quais comparáveis a crus classés de alta qualidade, mas com preços mais acessíveis. Quanto mais interior à região, menos úmido é o clima e é maior a concentração de cascalhos (graves) na composição do solo. A camada de cascalho, além de drenar bem o solo, conserva o calor do sol por mais tempo, aquecendo as raízes e incentivando-as a ir mais fundo em busca de água. Como escrevi, um segredo que não se vê na paisagem plana da vinha !!!
Saúde !!! (resultado de pesquisas na internet).
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