Creio que depois desta pandemia, no “Mundo do Vinho”, nada mais será como antes. Seja por que o vinho atingiu outras dimensões, seja porque a própria comunicação se desenvolveu por outros caminhos, surgindo as lives e reuniões usando zoom! Sempre acreditei que a experiência sensorial com vinho ia além dos aromas e sabores e a internet consolidou esta ideia. Em maio tive a oportunidade de participar de uma “zoom” organizada pela Mistral, com a equipe da Bodega Catena, que se transformou numa verdadeira aula!
Entre os assuntos desenvolvidos veio à tona a importância que a Bodega dedica à pesquisa. Fundada em 1902, a Catena Zapata é reconhecida por seu papel pioneiro em reviver a variedade Malbec na Argentina e ter descoberto os terroirs de alturas extremas aos pés dos Andes.
Nascido em Mendonça numa família de importantes produtores de vinhos, Nicolás Catena nunca estudou enologia, mas sempre participou de todas as etapas de elaboração dos vinhos em suas vinícolas: Bodega Catena Zapata, Alamos e Tília. Ele representa a terceira geração da família e já tinha um conhecimento bastante profundo de vinhos, por trabalhar com seu pai. Formado em Economia pela Universidade de Columbia, em Nova York, Nicolás teve uma relevante carreira acadêmica: chegou a ser professor-convidado da Universidade de Berkeley, na Califórnia. Mas destacou-se sempre por uma visão de mercado oportuna, capacidade que o fez acreditar no potencial da Argentina para torná-lo um grande exportador de vinhos, desde que mudasse o estilo do vinho que produzia.
Nos anos 80, o vinho argentino era feito no antigo estilo italiano. O vinho era guardado em grandes tonéis de madeira por três ou quatro anos e sofria uma oxidação gradual, como ainda hoje se faz com o Porto ou o Jerez. Nos anos 70, no mundo todo, vinho oxidado era considerado o oposto de um vinho de qualidade. O produto argentino continuava com o estilo oxidado, e considerado ruim por quem já estava provando vinhos mais modernos.
Em 1982, Nicolás foi convidado a dar aulas de Economia na Universidade de Berkeley, na Califórnia. Lá, um dos seus primeiros passeios foi ao Napa Valley, onde visitou a vinícola Mondavi. Ao provar um Cabernet Sauvignon e um Sauvignon Blanc equilibrados, cheios de aromas de fruta, sem oxidação, que pareciam franceses, teve uma verdadeira revelação. Ele tinha crescido com a ideia de que ninguém poderia fazer nada parecido com o vinho francês, de tão superior que ele era. Na Califórnia, Nicolás descobriu que era possível fazer um vinho tão bom quanto o francês.
Para entender melhor a Malbec, Nicolás desenvolveu uma verdadeira arqueologia da casta, buscando informações na França, mas descobriu que o último grande produtor de Malbec havia morrido há 150 anos. A uva Malbec é originária de Bordeaux, onde também é chamada de Cot, e os enólogos locais a misturavam com a Cabernet Sauvignon para criar grandes vinhos. Por conta da filoxera que atacou a região em meados do Século XVIII, o Malbec acabou praticamente desaparecendo na região, porque a uva é muito suscetível à praga. Com o tempo a Malbec encontrou seu habitat em Cahors, produzindo seus vinhos negros e tânicos, típicos nesta denominação francesa.
Apesar de ser uma uva forte, a Malbec é ao mesmo tempo delicada e demora mais a amadurecer. Por isso, em Bordeaux, após a filoxera, a Malbec foi substituída pela Merlot, uma uva que também tem caráter frutado, mas é colhida antes e envelhece muito bem, sendo uma boa opção para cortes com a Cabernet.
A Malbec veio para a Argentina na época da colonização, muito antes da chegada da filoxera em Bordeaux. Trazida em “Pé Franco”, se adaptou muito bem à Argentina, que tinha em Mendoza um clima é muito favorável, bem mais seco, o que diminui o risco de pragas e doenças.
Em um almoço com François Lurton, Nicolás apresentou seus vinhos, mas o enólogo francês declarou que eles pareciam ser vinhos do Languedoc, vinhos de clima quente, e se assim era Mendoza, seria impossível fazer vinhos de qualidade.
Nicolás queria fazer uma revolução na viticultura argentina. Queria fazer vinhos com a elegância de Bordeaux, e para isso foi até a Califórnia ver o que estava sendo feito por lá. Quando voltou para a Argentina, mudou tudo que era feito na vinícola.
A primeira providência foi a de procurar por vinhedos com maior altitude, onde a temperatura poderia ajudar a criar vinhos de “clima frio”. Assim sendo, buscou levar o Malbec até o limite de altitude, sendo capaz de amadurecer e agregar finesse e estrutura ao mesmo tempo, o que conseguiu no vinhedo em Tupungato, batizado de Adrianna (nome de sua filha mais nova), numa altura de 1500 metros.
Ele observou que a uva Malbec amadurecia muito bem, pois havia intensidade solar suficiente, e pelas baixas temperaturas o processo de amadurecimento era mais lento, criando a elegância que buscava para seus vinhos.
Junto com a outra filha - Laura Catena, que assumiu a vinícola, e uma equipe competente, a Catena se transformou numa marca mundial de grande prestígio. Assim, conquistou mercados como o da Grã-Bretanha, Estados Unidos e Brasil, entre outros mercados importantes.
Se hoje a uva Malbec se tornou o emblema da Argentina no Mundo do Vinho, muito se deve ao trabalho da família da Catena, no processo de sua adaptação em Mendoza.
A Catena passou a desenvolver um profundo estudo de seus vinhedos, e desde 1995 criou o Catena Institute of Wines. O vinhedo Adrianna se tornou um intenso laboratório de pesquisa e talvez seja uma das vinhas mais estudadas no mundo. A Catena conhece cada uma de suas parcelas e daí nasceu a diversidade de alguns rótulos, como os dois brancos: o Adrianna White Bones e o Adrianna White Stones.
O clima na região é inclemente, as temperaturas são extremas, principalmente o frio, e é muito seco. O solo é muito pobre em matéria orgânica, fazendo com que as videiras sofram muito estresse. Um verdadeiro desafio de trabalhar a viticultura em altas altitudes.
Há o efeito dos Raios UVb nas videiras (sobretudo nas horas de pico, entre 12:30 as 14:30hs), e passaram a usar filmes plásticos para diminuir o efeito dos rios ultravioleta.
A amplitude térmica pode ser afetada por grandes volumes de água (a maior parte dos vinhedos do mundo estão próximos da água), mas em Mendoza a amplitude térmica é efeito da seca e altitude. A elegância veio pela altitude que gerou esta amplitude térmica e pela presença de microrganismos que vivem nos solos.
Uma equipe de profissionais, enólogos e agrônomos, estudam o relacionamento das raízes com o terroir, das rizobactérias das raízes com as pedras, por exemplo. Assim, o direcionamento do vinhedo é feito em torno desse conhecimento, usando a ciência para preservar a natureza. O vinhedo Adrianna é parcelado em diferentes lotes e cada lote tem características diferentes.
No caso do White Bones o solo tem muitos restos fosseis, é um vinho estilo Mousseux da Borgonha. Tudo isto cria um vinho untuoso, de alta acidez, de bom corpo. Já no White Stones são as pedras que contribuem para um vinho estilo Chablis, de altíssima acidez e incrível mineralidade. E em ambos vinhos, tudo é resultado do terroir.
A pesquisa é constante - no Block 18 por exemplo, foi desenvolvido um estudo a partir de 130 mudas de Malbec, verificando a diversidade do tamanho das videiras, bem como as suas produtividades (desde 300grs por planta até 6 a 7 kg por videira).
Chegam a fazer 2000 mini-vinificações buscando entender as regiões de produção e suas parcelas, resultados em análises dos descritores dos vinhos por painelistas treinados, com os vinhos servidos em taças negras. Os estudos comparam a Malbec plantada em Mendoza (geralmente mais frutada e floral), com a Malbec plantada na Califórnia (geralmente com mais aromas de frutas secas e notas de pimenta).
Hoje, a busca é pela intervenção humana a nível zero! Há um protocolo padrão nos vinhedos e nas vinificações, de forma que só os fatores naturais são os influenciadores. Assim, a importância dada aos micro-organismos locais é enorme. Eles podem ser uma “vacina” natural contra a filoxera. Além disto, sabem que a presença de bacilos e bactérias incrementam a concentração de terpenos (compostos aromáticos) e protegem os vinhedos contra o ataque de fungos.
A busca por qualidade é constante, e assim, além de um programa próprio de produção de mudas, procuram por mudas certificadas da França e Itália, selecionadas para outros climas e solos. Neste tema, estão buscando por novos terroirs, indo para Patagonia e La Rioja para produzir um Sauvignon Blanc e Viognier, como desafio para os próximos anos. Além disto, as pesquisas quanto ao gosto do consumidor são fundamentais para entender o mercado.
Meus agradecimentos ao convite da Mistral, e ao contato com a equipe Catena que participou da “zoom”: Kendy Silverio, representante da vinícola Catena Zapata, Daniela Mezzatesta, engenheira agrônoma especialista em solos, e Fernando Buscema, enólogo e diretor do Instituto. Durante o Encontro provamos o Catena Alta Malbec 2016 Historic Rows – formado por um conjunto de fileiras históricas dentro das vinhas da família Catena. A mistura dessas linhas históricas produz um vinho altamente aromático e elegante, que fala pelo terroir e pelas vinhas cuidadas há quatro gerações.
Um vinho intenso e concentrado como os grandes tintos argentinos, e ao mesmo tempo elegante e bem equilibrado, como o desafio assumido por Nicolás Catena. Mostra uma grande complexidade e foi considerado um dos "100 Melhores Vinhos do Mundo" por três anos consecutivos para a Wine Spectator, criando uma referência para o Malbec.
Fazer da Malbec um ícone da Argentina foi consequência de uma estratégia para produzir um vinho que valorizasse os aromas e sabores frutados da casta, com muita elegância, equilíbrio e complexidade, envolvendo um estudo persistente de terroir, buscando por altitude que garantisse a elegância de um novo estilo de vinho para o país. E com certeza, em breve outros grandes vinhos Catenas de outras castas virão. Saúde !!!
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