Ainda incomum no Brasil, o cavista é figura popular na França e outros países na Europa. Trata-se de comerciante especializado em vinhos, profundo conhecedor de cada rótulo depositado nas antigas e atulhadas prateleiras de vinhos, que geralmente têm ciúme de suas garrafas, duramente escolhidas para seus clientes, como disse Luiz Horta em uma de suas crônicas. Mais do que o poder de comprar, mesmo que o cliente tenha dinheiro à mão, um cavista está interessado em saber porque alguém quer aquele vinho, tem que merecer o produto.
Já vivi uma experiência típica do gênero na Itália. Participando um Roteiro de Caça às Trufas no Piemonte, na cidade de Alba, com direito a todo tipo de alimento devidamente complementado com a iguaria, fui até um cavista próximo da instalação da Feira. Ele tinha vinhos de quase todas as regiões da Itália, o que nem sempre é comum num país regionalizado quando se fala da bebida de Baco. É difícil encontrar rótulos da Toscana no Piemonte e vice-versa.
As prateleiras estavam cobertas de grandes rótulos, daqueles de sonho de qualquer amante de vinhos e os preços estavam muito bons. Perguntei se poderia separar algumas garrafas e tendo recebido permissão, separei 12 delas sobre o balcão. O senhor olhou para as garrafas e me perguntou porque eu as havia escolhido. Expliquei que participo de algumas confrarias, e que os vinhos seriam degustados entre amigos. Ele disse que eu só poderia ficar com 6 delas!!! Que ele iria buscar 6 outras garrafas de rótulos menos conhecidos, mas tão bons quanto aqueles, e muito mais baratos. Disse-me que eu deveria deixar de beber rótulos, que devia deixar de lado as notas e pontuações de críticos, e que optasse por conhecer melhor cada terroir e produtor.
Acabei aceitando a opinião do cavista, porque ter a cabeça aberta costuma nos colocar diante de boas surpresas. E valeu a pena conhecer cada uma das 6 garrafas que ele indicou, custando em média um décimo das outras que eu havia separado. Indicou-me porque ele havia selecionado a garrafa e gostou de ver que eu anotava as suas informações, em especial quando beber cada uma delas, ou com que aquele rótulo harmonizaria melhor.
Assim sendo, achei interessante ler um artigo do Le Monde Des Vins, escrito por Jérôme Baudouin e Raoul Salama, sobre as opiniões de Dominique Fenouil, fundador de uma rede de cavistas, e Richard Bosquet, o diretor de vinhos no grupo Carrefour. Nas prateleiras de cada um, os vinhos são claramente diferentes. Esse confronto na medida em que o comércio do vinho hoje é um desafio considerável, os dois mundos se enfrentam, um pela seleção dos rótulos e outro focado em grandes volumes de venda. A distribuição em larga escala sozinha renderá mais de 450 milhões de euros em algumas semanas de Feira de Vinhos no grupo Carrefour na França (em geral começam no dia 18 de setembro de cada ano).
Por outro lado, os cavistas fazem o seu melhor propondo vinhos diferenciados, concentrando sua atividade no assessoramento de clientes e criando uma seleção altamente especializada. Este é o caso de Emmanuel Dupuis, que vende exclusivamente vinhos brancos, bem como livros sobre o tema, em sua loja, no Marais, em Paris. Ou Paul e Patricia Sirvent, em Lille, que vendem apenas os vinhos solares do Languedoc-Roussillon. Hoje, existem 5.275 cavistas na França, e o número tende a crescer.
A competição é exacerbada As feiras de vinhos costumam apresentar 5.000 rótulos de todas as regiões, com produtos vitivinícolas promovidos por varejistas, comerciantes de vinhos e vendedores online. Num contexto de condições econômicas incertas na Europa, o grande distribuidor foca sua atividade em grandes volumes e tem como arma nesta guerra implacável, a estratégia de descontos, sem a menor fidelidade ao produtor de vinhos.
Para Richard Bosquet, do Grupo Carrefour, o foco é atingir um público muito amplo através de 120 hipermercados, 1.000 supermercados e 3.000 lojas de conveniência distribuídos pela França. Esta é a principal diferença na opinião dele, entre a atividade de um cavista e a dele em especial. E o ponto que o aproxima ao cavista, é toda a atenção dedicada ao produto que vendem.
Para o cavista Dominique Fenouil a diferença é que a atividade é própria de um artesão. O conceito é estar o mais perto possível do cliente. Têm toda a atenção com a vizinhança, com o quarteirão, com a comuna. Evitam se instalar em loja em galeria porque já não existe mais nenhuma noção de do bairro nestas situações. O contato humano é permanente e obriga a ter vendedores altamente qualificados, capaz de responder perguntas sobre a harmonização entre comida e vinho, ou os detalhes de um terroir específico.
Neste cenário, as prateleiras de um cavista não terá rótulos de grande volume de produção. Mas isto não quer dizer que sua seleção terá preços inacessíveis. Pelo contrário, no afã de atender seu cliente de forma especializada e diferenciada, há rótulos para todos os gostos e bolsos. Ainda bem, que nesta batalha, haja chances tanto para Davi quanto Golias! E no final, quem ganha, são os amantes de vinho.